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A PEC Emergencial, proposta de emenda que viabiliza o pagamento do auxílio em troca de medidas de corte de gastos, tenta resolver um problema antigo do Brasil: o excesso de incentivos fiscais, como subsídios e benefícios tributários, concedidos pela União a diversos setores da economia.
Mas, ao que tudo indica, a tentativa será inócua. Da forma como a PEC foi construída e modificada no Congresso, o objetivo de reduzir as renúncias fiscais se assemelha mais ao que uma especialista em contas públicas descreve como um "jogo de cena".
Esses incentivos – conhecidos como "gastos tributários" no jargão da contabilidade pública – fazem com que o governo deixe de arrecadar centenas de bilhões de reais anualmente, enquanto o país se encaminha para o oitavo ano seguido de rombo nas contas públicas. Pior: muitos são concedidos por tempo indeterminado e não têm uma política de avaliação de resultados.
Para tentar acabar com esse ciclo, a proposta determina que o presidente da República encaminhe ao Congresso, em até seis meses após a promulgação da PEC, um plano prevendo a redução gradual dos gastos tributários para até 2% do Produto Interno Bruto (PIB) até 2029, começando com 10% de redução no total de incentivos já no primeiro ano de aplicação da medida. Isso representaria uma redução à metade do nível atual de incentivos fiscais.
O problema é que os parlamentares modificaram a PEC para proteger diversos benefícios, que com isso não poderão ser atingidos pelo plano de redução. E não estabeleceram a obrigatoriedade de o Congresso aprovar esse plano, nem definiram sanções caso o objetivo não seja cumprido.
Com isso, a proposta de reduzir os incentivos tende a ser inócua. O texto final da PEC foi costurado com a equipe econômica e teve apoio do governo.
Metade dos incentivos atuais não pode ser excluída
Segundo o projeto de lei orçamentária para 2021, os incentivos fiscais federais foram estimados em R$ 307,9 bilhões. É o montante que o governo deixará de arrecadar no ano que vem, por isso é chamado de “gasto tributário”.
O valor representa 4,02% do Produto Interno Bruto e 20,71% das receitas administradas pela Receita Federal. Desde 2010, a renúncia de receita com os incentivos está na casa da centena de bilhões de reais por ano.
A PEC quer reduzir o montante total desses benefícios pela metade ao longo de oito anos. Mas, ao mesmo tempo, estabelece que os principais deles não podem ser atingidos pelo corte.
São, ao todo, grandes seis incentivos que ficarão de fora da redução. Eles somam R$ 149,1 bilhões, o equivalente a 48,5% do total da renúncia fiscal prevista para 2021. São eles:
- Simples Nacional – renúncia de R$ 74,3 bilhões prevista para 2021;
- Entidades sem fins lucrativos – R$ 29,3 bilhões;
- Zona Franca de Manaus e demais áreas de livre comércio e zonas francas estabelecidas em lei – R$ 24,2 bilhões
- Produtos da cesta básica – R$ 17,6 bilhões;
- Prouni – R$ 2,7 bilhões; e
- Fundos Constitucionais do Norte, Nordeste e Centro-Oeste – R$ 1,1 bilhão.
Além desses seis citados na PEC, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), prometeu que a Lei da Informática também não será atingida. Essa foi uma demanda de parlamentares ligados ao setor para aprovar a PEC Emergencial. A Lei de Informática deve ser colocada na Constituição Federal, a partir de emenda a ser enviada pelo governo, para fugir do corte.
Ou seja, praticamente metade dos incentivos fiscais vigentes não poderá entrar no plano de redução. Com isso, praticamente todos os demais subsídios e benefícios tributários restantes teriam ser integralmente eliminados para que o total de renúncias caísse a 2% do PIB.
Isso inclui acabar com rendimentos isentos e não tributáveis do Imposto de Renda das pessoas físicas, com o regime de Microempreendedor Individual (MEI), benefícios para financiamentos habitacionais como o Minha Casa, Minha Vida, entre tantos outros (confira a lista completa de gastos tributários previstos para 2021 no infográfico ao fim desta matéria).
Medida pode ser inócua e virar carta de intenções
Diante de tantas exceções, o artigo da PEC que determina esse plano de redução está sendo lido por especialistas como inócuo, já que o governo sofreria muita pressão dos setores atingidos pelo corte e, tradicionalmente, o Congresso tem aversão a reduzir incentivos fiscais. E a própria redação do artigo corrobora a tese de que a redução não será mais do que uma carta de intenções.
O texto da PEC obriga o presidente da República a encaminhar o plano ao Congresso, mas não determina a obrigatoriedade de a proposta ser aprovada. Vale destacar que incentivos fiscais criados por lei e sem data definida de término só podem ser extintos por meio de uma nova lei, aprovada pelo Congresso.
A PEC também não prevê qualquer sanção se o presidente da República não encaminhar o projeto de redução, se o Congresso não aprová-lo ou se o objetivo de reduzir os incentivos a 2% do PIB não for alcançado.
As consultorias da Câmara e do Senado já tinham alertado para essas questões, porém não foram ouvidas durante a tramitação no Congresso.
A Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado, emitiu nota técnica explicando que os seis grandes benefícios tributários excluídos do corte respondem por quase 50% do total das perdas de receita com benefícios. “Assim, o esforço para se chegar aos 2% do PIB obrigaria à redução de grande parte das renúncias advindas dos outros benefícios tributários”, diz a IFI em relatório.
A Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira (Conof) da Câmara foi ainda mais enfática. “Literalmente, em até seis meses da promulgação desta emenda, teremos um plano elaborado para os oito próximos anos, cujas dificuldades de prosperar são elevadas”, disse em nota técnica. “A interpretação literal do texto e aritmética simples sugerem que ao fim de oito anos praticamente apenas os benefícios excetuados sobreviverão ao corte, se ao longo desse período o Legislativo, na parte que lhe cabe decidir, acatar o plano”, completa.
Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, afirma que o plano previsto na PEC é só jogo de cena. “Infelizmente é só jogo de cena, haja vista o rol de exceções e o fato de que, desde o exame das contas presidenciais de 2017, feito pelo TCU [Tribunal de Contas da União] em 2018, o Executivo federal tem postergado essa revisão.”
Ela lembra que a lei orçamentária de 2019 também obrigava o governo a apresentar plano de redução dos benefícios para 2% do PIB, num prazo de dez anos. Esse plano foi apresentado de forma sigilosa ao Congresso, mas não foi executado. Pelo contrário, algumas renúncias foram até renovadas, como a desoneração da folha de pagamentos até o fim deste ano.
Procurado para comentar o tema, o Ministério da Economia afirmou que não se manifestaria.